quarta-feira, 14 de abril de 2010

Poesia é bom mesmo... fora da estante!

Sábio, em suas raízes etimológicas, significa
“aquele que degusta”. Ser sábio não é ter acumulado
conhecimentos num grau superlativo : é haver
desenvolvido a capacidade erótica de sentir o gosto
da vida. Sapiência é “nada de poder , uma pitadinha
de saber e o máximo possível de sabor”.

( Roland Barthes)


As escolas da Rede Pública Municipal de Ensino da Cidade do Rio de Janeiro contam com um espaço especial que é a Sala de Leitura, local onde trabalho na E. M. Barão Homem de Melo, em Vila Isabel. Voltado para a promoção da leitura e a formação de leitores, o espaço é convidativo para a manifestação da criação e produção de leituras com alegria e prazer, misturando um toque mágico de sabor e saber.

Nesse espaço fervilham como num caldeirão mágico muitos textos, muitas leituras, diferentes gêneros e suportes textuais tais como contos clássicos e populares, poesias, fábulas, livros de imagens, histórias em quadrinhos, jornais, vídeos, revistas para crianças.

Utilizando diferentes modos e estratégias de leitura, no decorrer dos cinco primeiros anos do ensino fundamental os alunos que passam pela Sala de Leitura vão construindo suas histórias de leitores.

Além de termos um acervo variado e de qualidade, que é de suma importância para a formação de leitores reflexivos e críticos, é preciso guiá-los nesses primeiros passos e oferecer-lhes boa literatura sem obrigá-los a ler. E o mais importante: livros nas mãos das crianças, fora da estante!

Ana Maria Machado diz que... Ninguém tem que ser obrigado a ler nada. Ler é um direito de cada cidadão, não é um dever. É alimento do espírito. Igualzinho a comida. Todo mundo precisa, todo mundo deve ter a sua disposição – de boa qualidade, variada, em quantidades que saciem a fome. Mas é um absurdo impingir um prato cheio pela goela abaixo de qualquer pessoa. Mesmo que se ache que o que enche aquele prato é a iguaria mais deliciosa do mundo.

Sabemos que educar crianças para que gostem de ler não é tarefa fácil e por isso o projeto “Poesia é bom mesmo... fora da estante!”, que desenvolvo na Sala de Leitura, proporciona momentos de alegria, emoção, diversão e muito prazer para todos os envolvidos neste processo.


Trabalho coletivo E. M. Barão Homem de Melo, em Vila Isabel

Poesia é uma forma especial de ver o mundo. Manoel de Barros no livro Tratado das Grandezas do Ínfimo diz que “Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando ao lado de um pardal o dia dorme antes.” Adélia Prado no poema Sedução diz: “A poesia me pega com sua roda dentada, me força a escutar imóvel o seu discurso esdrúxulo ... Me pega a ponta do pé e vem até na cabeça, fazendo sulcos profundos. É de ferro a roda dentada.” Por isso gosto tanto da linguagem poética. Os textos são capazes de provocar impacto, de fazer ver com novos olhos o já visto. Gosto especialmente da emoção que a poesia desperta, com suas rimas, seu ritmo, seu jogo de palavras.

Leio muitos poemas para meus alunos (que é o que mais gosto de fazer) e com isso tento passar para eles a minha paixão pela literatura e o prazer que a leitura me proporciona.

Ofereço um banquete com os livros de poesia. Espalho pelos expositores, penduro num varal, arrumo-os em cestas. Deixo os alunos à vontade para que escolham o que mais lhes agradar. Escolhem pela ilustração do livro, pelo tamanho, pelo colorido da capa, pelo título ou pelo autor – sem interferência minha.

Neste projeto, com as turmas dos três primeiros anos das séries iniciais, começo selecionando livros com poemas curtos e engraçados.

Um livro bastante interessante para fazer rir e sensibilizar as crianças neste primeiro estágio é o “Poesia Fora da Estante”, que tem versos que mimetizam os sentimentos humanos, através de arranjos de sons, ritmos, imagens; que fazem com que o cotidiano possa ser visto como nunca fora antes.

Uma poesia divertida é a “Era Uma Vez”, de Sergio Capparelli, do livro acima sugerido:


Era Uma Vez

Era uma vez Do gato azarado
um gato cotó: chegou a vez:
fez cocô procê só. fez cocô procês seis.

E o gato zarolho Ah, que beleza!
veio depois: É o gato coquete:
fez cocô procês dois. fez cocô procês sete.

Tinha também Bom dia! Banoite!
um gato xadrez: E o gato maroto:
fez cocô procês três. fez cocô procês oito.

O gato seguinte E o gato zebrado
usava sapato: também resolve:
fez cocô procês quatro fez cocô procês nove.

Quem não conhece Viche! Vem chegando
O gato Jacinto: O gato Raimundo:
fez cocô procês cinco. Traz cocô pra todo mundo.


Brinco com as crianças ao ler esta poesia. Mudo a voz, faço caras, tento pegá-las de surpresa, quando a cada verso lido aponto para um determinado grupo. As crianças riem, se abaixam para não receberem o “cocô”. Neste momento se instaura um clima mágico, alegre, divertido. Mostram como são cheias de vida!

Leio outras poesias deste livro e de muitos outros também.

Outro poema “A Estrada e o Cavalinho”, também de Sergio Caparelli, do livro Boi da Cara Preta propicia brincadeira com o ritmo, imitando o trotar do cavalinho. Fazemos sons com batidas no peito, nas coxas, com a língua e a boca. Fazemos o cavalinho correr quando leio bem rápido e o cavalinho andar bem de-va-gar quando leio bem de-va-gar. As crianças se divertem e marcam com os movimentos o ritmo do poema.


Outros poetas também participam das nossas leituras: José Paulo Paes, Cecília Meireles, Roseana Murray, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Elias José, Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade, Paulo Leminski, Henriqueta Lisboa, entre outros.

O passo seguinte é fazer as crianças lerem muitos poemas no mesmo dia, sem que elas se deem conta do quanto leram. Distribuo cartõezinhos coloridos com cópias de poesias bem curtinhas. Nessa seleção também valem as poesias populares (as parlendas). Peço que leiam e troquem com os colegas do grupo quando terminarem. Depois com os colegas dos outros grupos, até que tenham lido muitos poemas. Peço que escolham o que mais gostaram e pergunto quem gostaria de ler “lá na frente”, para o grupo. Quase todos querem ler suas poesias escolhidas. Fazem fila para ler! Neste momento estou ao lado das crianças ( para “soprar” no ouvido se for preciso) , pois algumas crianças ainda não atingiram o nível de leitura fluente. É preciso ler para que elas possam repetir os versos lidos, para darem conta de sua leitura oral. Para finalizar esta etapa, as crianças ilustram com desenhos os poemas preferidos e os levam para casa, para compartilhar a leitura com seus responsáveis.

Num outro momento, distribuo cópias de um poema, leio e peço para que destaquem as palavras que rimam. Brincamos com as palavras, conversamos sobre as rimas, versos e estrofes, repetições e as imagens sugeridas a partir da leitura do poema.

Nesta etapa vale reescrever um poema escolhido, ilustrar e colar no caderno ou dar de presente para alguém especial. As crianças adoram pintar e bordar com os poemas!
Com os alunos do 4º e do 5º anos tudo continua valendo – as brincadeiras, as escolhas, o ambiente propício para a troca de ideias, sentimentos e emoções. Vale lembrar que esses alunos já passaram por estas etapas nos anos anteriores e já foram fisgadas pelo poder e encantamento da palavra poética. Sendo assim, ofereço poemas de autores tais com Adélia Prado, Cora Coralina, Drummond, Luis de Camões, que são meus favoritos, porque me dizem muito e me emocionam a cada leitura. É o momento da Roda de Leitura com poesias. Nesta etapa do projeto vamos aprofundar o olhar e conhecer melhor quem escreveu o poema que entrou na Roda.


Roda de Leitura

Para cada Roda de Leitura realizada escolho poemas curtos dentre os meus favoritos. Faço cópias, distribuo para os participantes e começo a atividade lendo para eles. Em seguida vou ouvindo cada aluno(a) ler e sugerindo os ajustes necessários. Quero que leiam bonito: com entonação, usando as pausas, que sintam prazer em ler e que compreendam o que estão lendo. Partilho com meus alunos alguns poemas que adoro!

Ensinamento

(Adélia Prado)

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo,
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
‘Coitado, até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Poeminha Amoroso

(Cora Coralina)

Este é um poeminha de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servira a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

A literatura toca fundo na emoção. Que poder têm as palavras!

É na roda que ficamos mais íntimos, trocamos ideias, falamos do que sentimos, falamos da vida, da beleza que a literatura nos proporciona. E conversamos muito sobre o que está nas linhas e nas entrelinhas dos textos poéticos. Os poemas Ensinamento e Poeminha Amoroso conversam entre si, se complementam, pois um deixa no ar a palavra não dita; o outro fala escancaradamente do amor.

As poesias guardam histórias, registram emoções, atravessam vidas. A cada leitura de poemas há uma descoberta de caminhos que nos fazem conhecer o mundo a nossa volta.


Ao término da Roda de Leitura, cada aluno leva uma tarefa para casa. Peço que leiam em voz alta para um adulto e que tragam notícias para o próximo encontro de como foi a recepção do poema lido.

Na semana seguinte inicio a Roda ouvindo os relatos dos alunos de como foi a recepção em casa. Quero que os poemas ultrapassem os muros da escola, pois crianças leitoras também são promotoras de leituras.

O próximo passo é exercitar a memória, tentando guardar os poemas de cor para recitá-los depois. A brincadeira é dramatizar a leitura, sentir o texto saindo de dentro, saindo da pele e perder a inibição.

No projeto “Poesia é bom mesmo... fora da estante!” a cada ano de escolaridade vou oferecendo “doses homeopáticas” de poesia para os alunos, para que se tornem apreciadores de boa literatura.

O prazer que as crianças sentem ao ler e ouvir poemas me inspira e se transforma em fôlego novo para muitas, muitas outras leituras... de poesia.


BIBLIOGRAFIA:


AGUIAR, Vera (Coord.). Poesia fora da estante. 6ª ed. Porto Alegre. Projeto. 1999

BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro. Record. 2001

BARTHES,Roland. O Prazer do texto. 3ª ed. São Paulo. Perspectiva. 1973

CAPARELLI, Sérgio. O boi da cara preta. 23ª ed. Porto Alegre. L&PM.1996

CORALINA, Cora. Vintém de cobre – Meias confissões de Aninha. Goiás. Universidade Federal de Goiás. 1983

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro. Editora Objetiva LTDA.2002

Rosangela Sivelli, professora da Sala de Leitura de E. M. Barão Homem de Melo, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro

3 comentários:

  1. becalmeida@gmail.com14 de abril de 2010 às 19:54

    Belo trabalho, Rosangela! E tenho certeza que é só um pouco do que você faz para dividir com as crianças a sua paixão pela poesia.
    Beth

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  2. Bonito trabalho, Rosangela. Dividindo com as crianças a sua paixão pela poesia, está plantando nelas a semente literária da transformação. Tenho certeza que isso é apenas uma amostra do que realiza na Sala de Leitura.
    Parabéns!
    Beth

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  3. Parabéns pelo seu trabalho. Vou aproveitar algumas dicas para trabalhar com meus alunos. Abraços,
    Renata

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