sábado, 7 de julho de 2012

SHAKESPEARE É ELE MESMO


 


RETIRADO DO SITE:  http://www.flip.org.br/noticias.php?id=754

Voltaire achava Shakespeare “vulgar”. Tolstoi não gostava do inglês. E Freud chegava a interromper sessões de análise para perguntar ao paciente de sopetão: “Você acredita em Shakespeare?” – como se o poeta, dramaturgo, ator e empresário do século XVI fosse uma espécie de deus, no qual se pode “acreditar” ou não. Se Voltaire e Tolstoi têm opiniões raras e poucos seguidores, Freud está em excelente companhia na “crença” de que Shakespeare não teria escrito Shakespeare. Com ele está gente tão brilhante como um Henry James, um Mark Twain ou um Francis Bacon, este um dos primeiros a duvidar, no final do século XVIII, de que o pobre William da pequena Stratford-upon-Avon pudesse ter produzido obra de tamanha magnitude.

Tudo isso é bobagem, garantem Stephen Greenblatt (à esquerda na foto) e James Shapiro, dois dos mais respeitados especialistas em Shakespeare no mundo, cansados desse tipo de dúvida. Os dois acabam de expor, na Tenda dos Autores, as razões – muitas e sólidas – pelas quais não têm a menor dúvida de que um indivíduo chamado William Shakespeare (1564-1616) de fato escreveu obras-primas como Hamlet ou Rei Lear. Para quem não anotou ou não entendeu as explicações, uma alternativa é ler os livros que ambos apresentam nesta Flip: pela Companhia das Letras, A virada, de Greenblatt, que foi professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e, em seguida, de Harvard; e pela Editora Planeta, 1599 – um ano na vida de William Shakespeare, de Shapiro, professor da Universidade Colúmbia.

A proclamada “ausência de documentos de época” sobre o bardo ou o fato de que contou com “colaboradores” para escrever muitas de suas peças são os dois argumentos mais usados para contestar a autoria da sua obra. E, no entanto, os dois argumentos revelam apenas uma vasta ignorância sobre os usos e costumes da época. “Não há surpresa alguma na ausência de documentos”, explicou Greenblatt. “Embora vivesse numa época muito burocrática, em que havia uma preocupação em registrar todos os passos de certas pessoas, Shakespeare não era uma dessas pessoas: era apenas um ator e dramaturgo, sem importância alguma.” Além disso, acrescentou, a Inglaterra já era oficialmente protestante, mas a mãe de Shakespeare era católica e, na verdade, quase todo mundo era católico. Como “o catolicismo então era equivalente à Al-Qaeda de hoje”, ele não tinha interesse algum em deixar uma trilha de documentos sobre suas origens ou suas ideias. “Shakespeare voava abaixo da linha do radar, tinha uma profunda aversão à prisão”, garantiu. Sobreviveram sua certidão de batismo, os recibos de impostos pagos em 1605 e seu testamento, entre outros parcos papéis. “A única coisa que gostaríamos de ter e não temos são os registros de suas sessões de análise”, brincou Greenblatt.

Quanto à questão das coautorias, Shapiro informou que, nos últimos dez ou 20 anos, os pesquisadores abandonaram a idolatria, o culto a Shakespeare nascido entre os alemães do século XVIII, e começaram a admitir que o bardo também trabalhou com um, dois ou mais colaboradores – como era praxe na época. “Temos de aceitar o fato de que Shakespeare era mortal e, como todo mundo, ele também colaborava”, acrescentou. Pelo menos três de suas últimas peças foram escritas em colaboração com três ou mais autores. Como se sabe? Todo autor tem impressões digitais literárias e há quem se debruce sobre os manuscritos para definir e reconhecer estilos. “Stephen e eu não fazemos isso, é um trabalho muito tedioso, mas tem sido feito e tem comprovado essas colaborações”, disse Shapiro.

Greenblatt, por sua vez, apressou-se a esclarecer que é “um idólatra” de Shakespeare: “Não é por acaso que seu trabalho colaborativo seja menos fascinante”. E aproveitou para informar que todos os enredos utilizados por Shakespeare não eram de sua criação; geralmente, eram peças já existentes e de muito sucesso, que ele reescrevia completamente – como fez com Hamlet e Rei Lear – “que já era encenado em Londres há dez anos em 1605, quando o texto foi finalmente impresso”, lembrou Shapiro.

“Mas ele retirava do texto original o elemento essencial que dava sentido ao texto e acabava com qualquer final feliz, promovendo uma verdadeira revolução no enredo”, acrescentou Greenblatt. E gritou um verso de Drummond, do poema que fora lido logo antes do início da mesa, para indicar o desespero do leitor/espectador em busca de explicações que Shakespeare não dá: “Fala fala fala fala fala fala!”

No cinema de hoje, disse ele, reaproveitar enredos é prática comum – é o famoso remake. “Todos os enredos de filmes se parecem, mas o dom especial de Shakespeare é que, mesmo quando ele é traduzido, adaptado, transformado, você ainda sente a força interna do texto”, disse Greenblatt.

Shapiro concordou que o grande talento do bardo era mesmo a habilidade para identificar o elemento que organizava o enredo original – e tratar logo de desorganizá-lo. Essa habilidade resultava de outra, igualmente extraordinária: a de reconhecer as mudanças de seu mundo e, de alguma forma, magicamente, ainda conseguir se comunicar com nosso mundo, 400 anos depois. “Ele enviou esses textos para o futuro”, acrescentou Greenblatt, convencido de que Shakespeare adoraria as transformações malucas que fazem com suas peças hoje em dia, já que era um revisor compulsivo, sempre cortando, inserindo, anotando, modificando seu próprio trabalho e o de outrem.

Era também um grande leitor, disse Shapiro. E era um vulcão de novas palavras, disse Greenblatt: só em Hamlet ele escreveu 600 palavras que nunca tinham sido escritas antes (o que não significa que não tivessem sido ditas). Ele foi o único dramaturgo de seu tempo que conseguiu ganhar dinheiro, a ponto de pagar uma pequena fortuna para ter um brasão de família e de comprar uma casa muito boa em Stratford-upon-Avon, para onde voltou antes de morrer. “Quando voltou, ele estava exaurido”, disse Greenblatt. “Estava vazio.” Tinha apenas 52 anos.

E por que é importante saber se foi ele ou não que escreveu tudo que atribuímos a Shakespeare? Greenblatt explica: “Alguém lhe manda uma carta, assustadoramente poderosa e escrita há 400 anos, e a manda para você. É natural que queira saber quem a escreveu!”

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