Idealizador de redes de leitura em escolas diz que é função
do educador ajudar os estudantes a processar as informações do acervo
Desafios como a criação do hábito da leitura entre crianças
e adolescentes, as novidades tecnológicas, a ampliação do acesso ao ensino e a
sofisticação do mercado editorial levaram o professor Edmir Perrotti a uma nova
concepção de biblioteca escolar e de seu papel pedagógico.
Com formação em Biblioteconomia - área que combinou com seu
interesse em Educação -, ele é docente da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, conselheiro do Ministério da Educação para a
política de formação de leitores e autor de livros infantis.
Perrotti, orientou a implantação de redes de bibliotecas
inovadoras nas escolas municipais de São Bernardo do Campo, Diadema e
Jaguariúna, no estado de São Paulo. Nessas estações de conhecimento, como ele
prefere chamá-las, a aprendizagem é estimulada pela presença de suportes
tecnológicos, como o computador e a televisão.
Em um ambiente que convida as crianças a descobrir e
aprofundar o prazer da leitura, os livros convivem com outras linguagens, como
a do teatro. "Assim trabalha-se o contato com as informações e também o
processamento delas", diz. Ex-professor da Universidade de Bordeaux, na
França, e de escolas de Ensino Fundamental no Brasil, além de editor e crítico
literário, Perrotti concedeu a seguinte entrevista a NOVA ESCOLA.
O que deve orientar a constituição de uma biblioteca
escolar?
Perrotti: Ela não pode restringir-se a um papel
meramente didático-pedagógico, ou seja, o de dar apoio para o programa dos
professores. Há um eixo educativo que a biblioteca tem de seguir, mas sua
configuração deve extrapolar esse limite, porque o eixo cultural é igualmente
essencial. Isso significa trazer autores para conversar, discutir livros,
formar círculos de leitores, reunir grupos de crianças interessadas num personagem,
num autor ou num tema. A biblioteca funciona como uma ponte entre o ambiente
escolar e o mundo externo.
De que modo se realiza essa abertura para fora da escola?
Perrotti: O responsável pela biblioteca tem o papel de
articular programas com a biblioteca pública e fazer contato com a livraria
mais próxima, além de estar atento à programação cultural da cidade. Há uma
série de estratégias possíveis para inserir a criança num contexto letrado. A
biblioteca precisa ter outra finalidade que não seja simplesmente a de um
depósito de onde se retiram livros que depois são devolvidos. Nós não
trabalhamos mais com a idéia de unidades isoladas. O ideal é formar redes, um
conjunto de espaços que eu chamo de estações de conhecimento, cujo objetivo é a
apropriação do saber pelas crianças.
Qual é a necessidade das redes?
Perrotti: Com o atual excesso de informações e a
multiplicação de suportes, nenhuma biblioteca dá conta de todas as áreas em
profundidade, até porque não haveria recursos para isso. O trabalho tem de ser
compartilhado com outras unidades da rede, por meio de mecanismos de busca
informatizados. Por exemplo: a escola guarda um pequeno acervo inicial sobre
arte, mas, se o interesse for por um conhecimento aprofundado, recorre-se a uma
biblioteca especializada na área. Hoje não há mais condições de manter o antigo
ideal de bibliotecas enciclopédicas, que abarcavam todas as áreas de
conhecimento.
Quem deve ser o responsável pela biblioteca?
Perrotti: Processar as informações e criar nexos entre elas é
um ato educativo. O responsável, portanto, é um educador para a informação, que
nós chamamos de infoeducador, um professor com especialização em processos
documentais. Uma rede de bibliotecas tem uma plataforma de apoio
técnico-especializado, que é a área do bibliotecário, um especialista em
planejamento e organização da informação. Junto com ele trabalham os
educadores, que são especialistas em processos de mediação de informação. Dar
acesso ao acervo não basta para que o aluno saiba selecionar e processar informações
e estabelecer vínculos entre elas.
De que modo se estimula a autonomia numa biblioteca?
Perrotti: É preciso desenvolver programas para construir
competências informacionais. Isso inclui desde ensinar a folhear um livro para crianças bem
pequenas até manejar um computador. Antigamente
imperava a idéia de que os adultos é que deveriam mexer nas máquinas e pegar os
livros na estante. Hoje deve-se formar pessoas que tenham uma atitude
desenvolvida, não só de curiosidade intelectual mas de domínio dos recursos de
informação. Essa é uma questão essencial da nossa época.
Por que a escola tem falhado em ensinar os alunos a
processar informações?
Perrotti: Porque se acredita que basta escolarizar as
crianças para formar leitores. De fato, a escola tem o papel de construir
competências fundamentais para a leitura, mas isso não quer dizer formar
atitude leitora. Hoje, o que distingue o leitor das elites do leitor das massas
é que o primeiro tem um circuito de trocas. Ele participa do comércio simbólico
da escrita, da produção à recepção: sabe o que é publicado, informa-se sobre os
autores, encontra outros leitores etc. Já a criança da escola pública muitas
vezes não tem livros em casa e só lê o que o professor pede. Ela não tem com
quem comentar. Está sozinha nesse comércio das trocas simbólicas.
Qual é o mínimo necessário para o funcionamento de uma
biblioteca escolar?
Perrotti: Estou convencido de que é a pessoa que trabalha
ali, mediando relações entre a criança, a informação e o espaço. Não precisa
ser alguém super especializado, mas que compreenda a função da escrita e da
imagem e que saiba qual é a importância daquilo na vida das pessoas. Assim, a
compra de livros seguirá um critério de escolha consciente. É claro que é bom
construir um ambiente agradável e funcional, mas não é indispensável, porque a
leitura não depende das instalações da biblioteca; ela se dá em qualquer lugar.
Quem deve escolher o acervo?
Perrotti: Nós temos trabalhado um modelo em que a escolha é
feita por todos os que participam dos processos de aprendizagem: professores,
coordenadores, diretores e alunos. Formulários são colocados à disposição para
que sejam feitas sugestões de compra. O infoeducador não só coleta esses dados
como divulga, por meio dos quadros de aviso, as informações sobre lançamentos
que saem na imprensa e na internet. Depois, ele vai analisar os pedidos,
separá-los em categorias livros importantes para os
projetos em andamento, leituras de informação
geral ou complementares etc. e, com
base nessas listas, a escolha é feita de
acordo com os recursos disponíveis.
Como comprometer o aluno com a organização e a manutenção da
biblioteca?
Perrotti: Ele participa da escolha do acervo e também pode
estar pessoalmente representado nele, por meio de livros que ele escreve e de
documentos de sua passagem pela escola. Uma parte do acervo vem da indústria
cultural e outra é produzida internamente, com documentos e relatos referentes
à história da instituição. Formar um repertório de dados locais cria relações
com as informações universais.
Descreva a biblioteca escolar ideal.
Perrotti: É aquela que possui todo tipo de recurso
informacional, do papel ao equipamento eletrônico. O espaço é construído
especialmente para sua finalidade e de acordo com quem vai usar. Se o público
majoritário é infantil, a disposição dos móveis e do acervo deve permitir que a
criança se mova com autonomia. É preciso ser um local acolhedor, mas que
empurre rumo à aventura, porque conhecer é sempre se deslocar.
Por que se diz que os jovens não gostam de ler?
Perrotti: Os interesses mudam na passagem da infância para a
adolescência e a leitura que era feita antes já não interessa tanto, mesmo
porque cresce a concorrência de outras mídias. Essa é uma transição crítica e
ainda não foram definidas ações específicas para promover a leitura nessa faixa
etária. Os adolescentes identificam o livro com as tarefas da escola, que
reforça essa percepção porque raramente sai da abordagem instrumental da
leitura. E no âmbito social, entre os amigos, a leitura não está presente.
Mesmo assim, essa fase é a das grandes paixões. Portanto, há um espaço enorme
para promover a leitura entre os jovens.
É possível formar leitores por meio de políticas públicas?
Perrotti: O problema é saber que caráter elas têm. Eu não
concordo com estratégias que pretendam ensinar os alunos a gostar de ler. A
função do poder público é criar ambientes que dêem condições de ler, tentar
despertar as crianças para as potencialidades da escrita, prepará-las para as
competências leitoras enfim, providenciar para que
seja constituída a trama que sustenta o ato de
ler. Mas gostar de ler é questão
de foro íntimo, não de
políticas públicas.
A escola deve obrigar um aluno a ler livros e freqüentar
bibliotecas mesmo que ele não goste?
Perrotti: Não se pode deixar de perguntar por que esse aluno
não gosta de ler. Ele teve uma relação negativa com a situação de aprendizagem?
Ninguém lê em casa? Tem dificuldades de visão? Não domina o código? Não tem
circuitos culturais a sua volta? Tudo isso pode e deve ser trabalhado. Agora,
se ele teve apoio para experimentar a prática da leitura e prefere fazer outras
coisas, não adianta forçar. É claro que não estou falando da leitura funcional,
indispensável para a vida diária. Nesse caso, é obrigatório negociar com a
criança o "não querer ler".
É melhor ler literatura de má qualidade do que não ler nada?
Perrotti: A pergunta já supõe que de fato existe uma
literatura de má qualidade. Há leitores que são capazes de voar longe com um
suposto mau livro, assim como há muitos trabalhos escolares que se utilizam de
grandes textos, mas sufocam o interesse de aprender. Por outro lado, não é possível
deixar o gosto do leitor imperar sozinho. É fundamental operar mediações entre
as crianças e uma literatura que tenha condições de produzir significações
importantes.
O uso do livro em sala de aula está em decadência?
Perrotti: Ele está aquém do que gostaríamos que fosse e
também do que seria necessário. Mesmo assim, o livro está entrando nas escolas
numa medida que não entrava, nem que seja por meio das distribuições feitas
pelo Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais. Há 50 anos
nem sequer se sonhava com isso no Brasil. O problema maior é o de mau uso
desses livros, com estratégias impositivas de leitura. Muitas vezes falta
penetrar no avesso dos textos com as crianças e realmente mergulhar numa viagem
de conhecimento, de imaginação.
Até que ponto as bibliotecas levam ao hábito da leitura?
Perrotti: Eu participei de uma pesquisa feita com as crianças
usuárias das redes de biblioteca que ajudei a implantar no estado de São Paulo.
Queríamos saber se elas estão incorporando a leitura a sua prática de vida e
não apenas como lição de casa. Qual é a constatação? Houve um grande avanço e
as crianças se mostram muito mais familiarizadas com os livros, mas
infelizmente ainda não usam as novas competências para trocas culturais. Por
exemplo: não têm o hábito de comprar e emprestar livros. A prática escolar não
se transferiu para a prática cultural.
Há perspectiva de mudança para essa situação?
Perrotti: Eu vejo uma tendência de funcionalização. Os meios
eletrônicos trouxeram, aparentemente, uma presença maior da escrita, mas o uso
que se faz dela é cada vez mais abreviado. Vai-se transformando a língua no
elemento mínimo para a transmissão da mensagem. Nós estamos a anos-luz de
formar pessoas que, ao cabo do período de escolaridade, vão se relacionar com a
escrita como uma ferramenta de conhecimento e de experiências estéticas, numa
dimensão não pragmática. Restringir as ferramentas de linguagem a sua função
utilitária é retirar de nós mesmos aquilo que nos humaniza a capacidade de dizer de uma forma articulada. As novas
bibliotecas têm de enfrentar essa questão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário