domingo, 25 de novembro de 2012

UM MILITANTE DA BELEZA







A homenagem ao poeta e escritor  Bartolomeu Campos de Queirós, auto-declarado um militante da beleza- na FLIP 2012, foi bela como sua trajetória de vida. Uma mesa composta por suas amigas, admiradoras e companheiras de idéias, organizada pelo MBL na FLIP 2012, emocionou a platéia. Nilma Lacerda, escritora premiada e professora da Universidade Federal Fluminense, Ninfa Parreiras, psicanalista, escritora e pesquisadora do Centro Educacional Anísio Teixeira, e Elizabeth Serra, Secretária Geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil leram trechos de livros do poeta, falecido em janeiro deste ano, bem como recordaram suas idéias mais relevantes sobre a importância da literatura e seu comprometimento com a criação de um país com mais leitores.

Militante também da justiça e da simplicidade, Bartolomeu contribuiu não só para a literatura, mas para as políticas públicas da leitura e pela disseminação de valores como solidariedade. Ninfa recordou um episódio emblemático da trajetória profissional de Bartolomeu.  Quando ele foi nomeado presidente do Palácio das Artes , em Belo Horizonte,  institui uma prática nada convencional: o horário do banho dos meninos de rua no chafariz do Palácio. O que antes era reprimido pela segurança local virou um direito. Ele fornecia sabão e xampu às crianças, que enfrentavam a água gelada.  Para aquecer o corpo depois, servia um lanche de café com leite. Por essa iniciativa, ele ganhou o Prêmio Gentileza Urbana e tinha muito orgulho desse prêmio. Nilma Lacerda, com a graça que lhe é característica, leu uma carta escrita por ela a Bartolomeu, em que traçava intertextualidade com Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, e relatava a experiência do nascimento de um novo leitor. Elizabeth Serra ressaltou a importância decisiva que Bartolomeu exerceu em sua trajetória profissional, e relembrou um encontro antológico entre ele, e Ana Maria Machado, na FLIP 2011, em mesa promovida pelo MBL. Foi  a última participação pública do poeta.

Bartolomeu também foi homenageado em um evento OFF Flip, que ocorreu na casa SESC, em Paraty. Áurea Alencar, secretária executiva do MBL recordou como Bartolomeu foi uma figura chave para disseminação do Movimento e para o engajamento do brasileiros por uma sociedade leitora. “Tecendo o fio da palavra nasceu o Manifesto, fruto da provocadora inquietude de Bartolomeu. Passamos a sonhar com ele o sonho de um país mais justo, reconhecendo a literatura como um direito de todos que ainda não está escrito. Passamos ao ato e nasceu o Movimento por um Brasil literário, perseguindo a efetivação desse direito. Às minhas inquietações sobre o percurso do Movimento por um Brasil Literário tinha ele sempre as devidas palavras que me acalmavam e eu as tenho de cor, de coração: o Movimento é como uma onda no mar que vai e volta ou mais, toda mudança que se quer profunda é lenta, dentre outros afagos”, disse Áurea.

A Revista do SESC  realizou uma edição inteiramente dedicada a Bartolomeu. A escritora e professora Ruth Silviano Brandão escreveu: “O tempo de Bartolomeu é outro, diferente dos Teóricos. O dele corre, para, muda e mantém as coisas, mesmo que elas brotem e murchem, de forma diferente nos homens, nos bichos, nas borboletas”.  Francisco Gregório Filho, um dos fundadores do PROLER e amigo de uma vida inteira de Bartolomeu disse: “Pelo Brasil afora tínhamos sempre a certeza do sucesso e da repercussão das palestras do Bartolomeu. Com sua fala mansa e pausada, aprofundava questões sobre educação e leitura, verdadeiros cursos sobre o exercício da cidadania, sublinhando de forma contundente a importância das políticas públicas que  dessem relevo à leitura. Voz necessária que permanecerá sempre com os que trabalham nessa área.”

As homenagens não tem fim. Seguirão acontecendo na agenda literária de 2012, em eventos de norte a sul do Brasil. Bartolomeu, mesmo apos seu falecimento, segue contribuindo para a criação de uma sociedade leitora e para o encantamento dos que já amam ler.



 http://www.brasilliterario.org.br/noticias/mostra_2010.php?id=150


sábado, 24 de novembro de 2012

MIA COUTO NO BRASIL


Mia Couto: a literatura como forma de ativismo

 13 DE NOVEMBRO DE 20


Em visita ao Brasil, escritor moçambicano fala para pequenas multidões em roteiro inédito — que incluiu saraus da periferia paulistana
Por João Novaes, no Opera Mundi
Amantes da poesia lotaram o Bar do Zé Batidão, na zona sul, para acompanhar a conversa com Mia Couto e o sarau da Cooperifa Sob a laje de um sobrado no Jardim São Luís, bairro de periferia na zona Sul de São Paulo, mais de cem pessoas se acomodavam para escutar atentamente e com confesso deslumbramento uma palestra informal do poeta, biólogo e jornalista moçambicano Mia Couto, autor de obras como “Terra Sonâmbula” (Cia. Das Letras, 1992 (1ª ed.), 208 pgs.), de passagem pelo Brasil para a divulgação de seu mais recente livro, “A Confissão da Leoa” (Cia das Letras, 2012, 256 pgs.).
Em meio aos populares do Bar do Zé Batidão, onde ainda participou de um sarau organizado pelo coletivo Cooperifa, na última quarta-feira (07/11), Mia parecia mais à vontade do que no dia anterior, quando conversou amigavelmente com um público mais elitizado, em uma sala de cinema do Conjunto Nacional, localizado nos Jardins, bairro ‘nobre’ da zona oeste. Nas duas ocasiões, conversou com a reportagem deOpera Mundi.
O perfil pacato e conciliador do escritor não esconde uma vida marcada pela militância, que começou nos anos 1970, quando participou da luta pela independência de Moçambique, quando se juntou à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Hoje, desencantado, não participa mais da vida político-partidária do país (promete nunca mais voltar a se envolver com partidos), mas o ativismo está presente em suas atividades como jornalista, biólogo (dirige uma empresa de estudos sobre impactos ambientais) e, sem dúvida, em suas obras.
Mia Couto dialoga com o público da Cooperifa
Ativismo político “Política é um assunto tão sério que não pode ser deixado só nas mãos dos políticos. Temos de reinventar uma maneira de fazer política, porque isso afeta a nós todos. Faço isso pela via da escrita, da literatura, já que me mantenho jornalista e colaboro com jornais. Também faço intervenções como visitar bairros pobres onde as pessoas não recebem meu tipo de mensagem. Essa é a minha militância”, explica. Atualmente, afirma manter uma distância crítica do governo, controlado pela Frelimo desde a independência, em 1975. Para ele, a proximidade entre o discurso e a prática do partido se distanciaram, mas afirma não haver ressentimento ou sensação de traição, pois considera que esse fenômeno se reproduz em todo o mundo. Ao contrário, se diz grato por seu tempo de militância partidária. “Fazer política hoje exige grande criatividade, temos de saltar fora de modelos, mas o modelo de fazer política faliu. Em todo o lado do mundo. Então é preciso reinventar, ter imaginação. Para ter imaginação é preciso sair fora dos padrões que vemos”.
Nascido António Emílio Leite Couto, filho de um casal de portugueses que já viviam há muitos anos no país africano, Mia cresceu em uma casa colonial na Beira, terceira maior cidade de Moçambique, em um meio rural e próximo do ambiente místico encontrado em algumas de suas histórias.
Na juventude, já morando em Maputo (na época colonial chamada de Lourenço Marques) e começando a ganhar destaque por seus poemas, decidiu estudar medicina. Por diretrizes da luta revolucionária, foi escalado como jornalista na Tribuna, publicando matérias favoráveis à independência – até o jornal ter sido incendiado por colonos portugueses. Lembra que nunca pegou em armas durante a luta pela independência, pois, embora os brancos fossem bem-vindos no movimento, não eram autorizados a atuar como guerrilheiros, mas no serviço clandestino.
Em suas histórias de luta pela independência, Mia lembra de como se alistou clandestinamente na Frelimo. “Havia na época um ritual chamado ‘confissão de sofrimento’, onde cada pessoa para ser aceita contava sua história de vida e todos os fatos que o colonialismo os fez sofrer. Ouvi cada história e me assustava, porque não tinha sofrido tanto quanto eles. Temia que teria de inventar uma história muito sofrida para ser aceito. Quando chegou minha vez de falar, me perguntaram: ‘É você que escreve poesias?’ e respondi que sim. Daí me disseram: ‘Então tudo bem, você pode entrar’”, conta, sempre provocando risos.
Atuação ambiental Sobre seu trabalho com estudos de impacto ambiental, Mia é mais um entre os muitos ativistas moçambicanos a relatar a dificuldade para se encontrar um equilíbrio entre o ativismo nessa área e a agenda desenvolvimentista. Perguntado sobre os problemas que as grandes obras, principalmente relacionadas à mineração, têm causado às populações e ao meio ambiente, ele afirma que o principal problema se encontra na aplicação das leis.
“Moçambique tem uma grande fragilidade institucional que é seguir o que está na lei. O país tem leis, mas não a capacidade para acompanhamento e controle. Isso tem de ser resolvido. Por outro lado, é preciso prestar atenção, pois Moçambique está em uma armadilha grande: entre ficar como está e aceitar aquilo que vem [de fora], o que nem sempre é o melhor. O país lutou muito para atrair investimentos, para que sua imagem criasse simpatia com o grande capital. (…) Deve-se lembrar que a miséria também é um problema ambiental. [Não se pode] deixar os países como Moçambique como estão, como se estivessem bem, quando na verdade eles não estão [Mia criticou em outras ocasiões, assim como  neste caso, a corrente que defende que a África deveria permanecer um ‘continente selvagem’]. A miséria gera problemas enormes em Moçambique, tão insustentáveis quanto aos atribuídos à indústria, que muitas vezes é cega”. Para ele, o meio termo deste conflito só pode ser alcançado com o diálogo.
Engajamento poético Entre tantos trabalhos e engajamentos, Mia considera que sua atividade mais importante é dar conselhos e orientações aos jovens moçambicanos que o procuram e manifestam seu desejo de se tornarem poetas. “A condição para o poeta não é que ele escreva bem, mas que tenha uma história a ser contada. A falta de domínio da técnica não deve ser um impedimento para continuar, não deve ser a morte do sonho”, afirma, lamentando que um dos locais onde mais se procure desencorajar essa iniciativa sejam justamente as escolas.
Foi muito aplaudido quando disse essa frase na Cooperifa, já que estava cercado de um público que, por muitas vezes, vê o seu direito a produção intelectual ser alvo de preconceito. “Acredita-se que a periferia pode dar jogador, cantor, dançarino, mas poeta? No sentido de que o poeta não produz só uma arte, mas pensamento…Acho que o grande racismo, a grande maneira de excluir o outro, é dizer que o outro pode produzir o que quiser, até o bonito, mas pensamento próprio, não. E vi aqui que havia um pensamento que está muito vivo e está fazendo acontecer coisas”

sábado, 10 de novembro de 2012

PERECÍVEL, mas indestrutível



Publicado : Folha de S.Paulo, 10/11/2012

RIO DE JANEIRO - A loura madura, bonita e empetecada olhava com encanto para as prateleiras ao seu redor. Era num sebo -um charmoso sebo no Leblon. Ao lado, seu marido, uma personalidade da TV, conversava com alguns clientes. De repente, ouviu-se a voz da mulher: "Que livraria mais engraçada! Só tem livro velho!".
Sebos interferem com a sensibilidade de seus frequentadores.
Há quem se compadeça daqueles livros porque acha que, lidos ou não, eles foram desprezados por seus antigos compradores. Para outros, o sebo representa uma gloriosa sobrevida para muitos livros -quem sabe um dia estes não serão tirados das estantes por leitores mais atentos e interessados, que saberão apreciá-los melhor?
Sem falar em tantos livros tão amados, e que só foram parar no sebo por motivo de força maior, como a morte de seus possuidores originais. É comum que, morto o dono da casa, e pela impossibilidade de continuar morando nela, a viúva seja obrigada a se desfazer do recheio ou do próprio imóvel, donde lá se vão os livros. E não há nada demais em que a sobrevida de um livro se deva à morte de alguém. Boa parte dos livros que possuo já pertenceu a uma ou mais pessoas, e, no futuro, pertencerão a terceiros ou quartos -espero.
Uma notícia na Folha, há dias, me calou fundo: a história de Cleuza, 47, a catadora de recicláveis em Mirassol (452 km de São Paulo), que recolhe os livros que encontra no lixo, recupera-os e os leva para uma biblioteca que criou no centro de triagem do lugar. Entre os 300 títulos que já salvou da destruição e empresta ou dá a seus colegas, estão muitos de Machado de Assis, Érico Verissimo e José Saramago. Eu ficaria orgulhoso de ver algum dos meus próprios livros nesse lote.
Há melhor prova de que, por Cleuza, o livro -de papel, tão precário e perecível- será indestrutível?

 

 

RUY CASTRO

EDMIR PERROTTI: BIBLIOTECA NÃO É DEPÓSITO DE LIVROS



Idealizador de redes de leitura em escolas diz que é função do educador ajudar os estudantes a processar as informações do acervo

 Edmir Perrotti. Foto: Gustavo Lourenção

Desafios como a criação do hábito da leitura entre crianças e adolescentes, as novidades tecnológicas, a ampliação do acesso ao ensino e a sofisticação do mercado editorial levaram o professor Edmir Perrotti a uma nova concepção de biblioteca escolar e de seu papel pedagógico.

Com formação em Biblioteconomia - área que combinou com seu interesse em Educação -, ele é docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, conselheiro do Ministério da Educação para a política de formação de leitores e autor de livros infantis.

Perrotti, orientou a implantação de redes de bibliotecas inovadoras nas escolas municipais de São Bernardo do Campo, Diadema e Jaguariúna, no estado de São Paulo. Nessas estações de conhecimento, como ele prefere chamá-las, a aprendizagem é estimulada pela presença de suportes tecnológicos, como o computador e a televisão.

Em um ambiente que convida as crianças a descobrir e aprofundar o prazer da leitura, os livros convivem com outras linguagens, como a do teatro. "Assim trabalha-se o contato com as informações e também o processamento delas", diz. Ex-professor da Universidade de Bordeaux, na França, e de escolas de Ensino Fundamental no Brasil, além de editor e crítico literário, Perrotti concedeu a seguinte entrevista a NOVA ESCOLA.

O que deve orientar a constituição de uma biblioteca escolar?
 Perrotti: Ela não pode restringir-se a um papel meramente didático-pedagógico, ou seja, o de dar apoio para o programa dos professores. Há um eixo educativo que a biblioteca tem de seguir, mas sua configuração deve extrapolar esse limite, porque o eixo cultural é igualmente essencial. Isso significa trazer autores para conversar, discutir livros, formar círculos de leitores, reunir grupos de crianças interessadas num personagem, num autor ou num tema. A biblioteca funciona como uma ponte entre o ambiente escolar e o mundo externo.

De que modo se realiza essa abertura para fora da escola?
Perrotti: O responsável pela biblioteca tem o papel de articular programas com a biblioteca pública e fazer contato com a livraria mais próxima, além de estar atento à programação cultural da cidade. Há uma série de estratégias possíveis para inserir a criança num contexto letrado. A biblioteca precisa ter outra finalidade que não seja simplesmente a de um depósito de onde se retiram livros que depois são devolvidos. Nós não trabalhamos mais com a idéia de unidades isoladas. O ideal é formar redes, um conjunto de espaços que eu chamo de estações de conhecimento, cujo objetivo é a apropriação do saber pelas crianças.

Qual é a necessidade das redes?
Perrotti: Com o atual excesso de informações e a multiplicação de suportes, nenhuma biblioteca dá conta de todas as áreas em profundidade, até porque não haveria recursos para isso. O trabalho tem de ser compartilhado com outras unidades da rede, por meio de mecanismos de busca informatizados. Por exemplo: a escola guarda um pequeno acervo inicial sobre arte, mas, se o interesse for por um conhecimento aprofundado, recorre-se a uma biblioteca especializada na área. Hoje não há mais condições de manter o antigo ideal de bibliotecas enciclopédicas, que abarcavam todas as áreas de conhecimento.

Quem deve ser o responsável pela biblioteca?
Perrotti: Processar as informações e criar nexos entre elas é um ato educativo. O responsável, portanto, é um educador para a informação, que nós chamamos de infoeducador, um professor com especialização em processos documentais. Uma rede de bibliotecas tem uma plataforma de apoio técnico-especializado, que é a área do bibliotecário, um especialista em planejamento e organização da informação. Junto com ele trabalham os educadores, que são especialistas em processos de mediação de informação. Dar acesso ao acervo não basta para que o aluno saiba selecionar e processar informações e estabelecer vínculos entre elas.

De que modo se estimula a autonomia numa biblioteca?
Perrotti: É preciso desenvolver programas para construir competências informacionais. Isso inclui desde ensinar a folhear um livro para crianças bem pequenas até manejar um computador. Antigamente imperava a idéia de que os adultos é que deveriam mexer nas máquinas e pegar os livros na estante. Hoje deve-se formar pessoas que tenham uma atitude desenvolvida, não só de curiosidade intelectual mas de domínio dos recursos de informação. Essa é uma questão essencial da nossa época.

Por que a escola tem falhado em ensinar os alunos a processar informações?
Perrotti: Porque se acredita que basta escolarizar as crianças para formar leitores. De fato, a escola tem o papel de construir competências fundamentais para a leitura, mas isso não quer dizer formar atitude leitora. Hoje, o que distingue o leitor das elites do leitor das massas é que o primeiro tem um circuito de trocas. Ele participa do comércio simbólico da escrita, da produção à recepção: sabe o que é publicado, informa-se sobre os autores, encontra outros leitores etc. Já a criança da escola pública muitas vezes não tem livros em casa e só lê o que o professor pede. Ela não tem com quem comentar. Está sozinha nesse comércio das trocas simbólicas.

Qual é o mínimo necessário para o funcionamento de uma biblioteca escolar?
Perrotti: Estou convencido de que é a pessoa que trabalha ali, mediando relações entre a criança, a informação e o espaço. Não precisa ser alguém super especializado, mas que compreenda a função da escrita e da imagem e que saiba qual é a importância daquilo na vida das pessoas. Assim, a compra de livros seguirá um critério de escolha consciente. É claro que é bom construir um ambiente agradável e funcional, mas não é indispensável, porque a leitura não depende das instalações da biblioteca; ela se dá em qualquer lugar.

Quem deve escolher o acervo?
Perrotti: Nós temos trabalhado um modelo em que a escolha é feita por todos os que participam dos processos de aprendizagem: professores, coordenadores, diretores e alunos. Formulários são colocados à disposição para que sejam feitas sugestões de compra. O infoeducador não só coleta esses dados como divulga, por meio dos quadros de aviso, as informações sobre lançamentos que saem na imprensa e na internet. Depois, ele vai analisar os pedidos, separá-los em categorias livros importantes para os projetos em andamento, leituras de informação geral ou complementares etc. e, com base nessas listas, a escolha é feita de acordo com os recursos disponíveis.

Como comprometer o aluno com a organização e a manutenção da biblioteca?
Perrotti: Ele participa da escolha do acervo e também pode estar pessoalmente representado nele, por meio de livros que ele escreve e de documentos de sua passagem pela escola. Uma parte do acervo vem da indústria cultural e outra é produzida internamente, com documentos e relatos referentes à história da instituição. Formar um repertório de dados locais cria relações com as informações universais.

Descreva a biblioteca escolar ideal.
Perrotti: É aquela que possui todo tipo de recurso informacional, do papel ao equipamento eletrônico. O espaço é construído especialmente para sua finalidade e de acordo com quem vai usar. Se o público majoritário é infantil, a disposição dos móveis e do acervo deve permitir que a criança se mova com autonomia. É preciso ser um local acolhedor, mas que empurre rumo à aventura, porque conhecer é sempre se deslocar.

Por que se diz que os jovens não gostam de ler?
Perrotti: Os interesses mudam na passagem da infância para a adolescência e a leitura que era feita antes já não interessa tanto, mesmo porque cresce a concorrência de outras mídias. Essa é uma transição crítica e ainda não foram definidas ações específicas para promover a leitura nessa faixa etária. Os adolescentes identificam o livro com as tarefas da escola, que reforça essa percepção porque raramente sai da abordagem instrumental da leitura. E no âmbito social, entre os amigos, a leitura não está presente. Mesmo assim, essa fase é a das grandes paixões. Portanto, há um espaço enorme para promover a leitura entre os jovens.

É possível formar leitores por meio de políticas públicas?
Perrotti: O problema é saber que caráter elas têm. Eu não concordo com estratégias que pretendam ensinar os alunos a gostar de ler. A função do poder público é criar ambientes que dêem condições de ler, tentar despertar as crianças para as potencialidades da escrita, prepará-las para as competências leitoras enfim, providenciar para que seja constituída a trama que sustenta o ato de ler. Mas gostar de ler é questão de foro íntimo, não de políticas públicas.

A escola deve obrigar um aluno a ler livros e freqüentar bibliotecas mesmo que ele não goste?
Perrotti: Não se pode deixar de perguntar por que esse aluno não gosta de ler. Ele teve uma relação negativa com a situação de aprendizagem? Ninguém lê em casa? Tem dificuldades de visão? Não domina o código? Não tem circuitos culturais a sua volta? Tudo isso pode e deve ser trabalhado. Agora, se ele teve apoio para experimentar a prática da leitura e prefere fazer outras coisas, não adianta forçar. É claro que não estou falando da leitura funcional, indispensável para a vida diária. Nesse caso, é obrigatório negociar com a criança o "não querer ler".

É melhor ler literatura de má qualidade do que não ler nada?
Perrotti: A pergunta já supõe que de fato existe uma literatura de má qualidade. Há leitores que são capazes de voar longe com um suposto mau livro, assim como há muitos trabalhos escolares que se utilizam de grandes textos, mas sufocam o interesse de aprender. Por outro lado, não é possível deixar o gosto do leitor imperar sozinho. É fundamental operar mediações entre as crianças e uma literatura que tenha condições de produzir significações importantes.

O uso do livro em sala de aula está em decadência?
Perrotti: Ele está aquém do que gostaríamos que fosse e também do que seria necessário. Mesmo assim, o livro está entrando nas escolas numa medida que não entrava, nem que seja por meio das distribuições feitas pelo Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais. Há 50 anos nem sequer se sonhava com isso no Brasil. O problema maior é o de mau uso desses livros, com estratégias impositivas de leitura. Muitas vezes falta penetrar no avesso dos textos com as crianças e realmente mergulhar numa viagem de conhecimento, de imaginação.

Até que ponto as bibliotecas levam ao hábito da leitura?
Perrotti: Eu participei de uma pesquisa feita com as crianças usuárias das redes de biblioteca que ajudei a implantar no estado de São Paulo. Queríamos saber se elas estão incorporando a leitura a sua prática de vida e não apenas como lição de casa. Qual é a constatação? Houve um grande avanço e as crianças se mostram muito mais familiarizadas com os livros, mas infelizmente ainda não usam as novas competências para trocas culturais. Por exemplo: não têm o hábito de comprar e emprestar livros. A prática escolar não se transferiu para a prática cultural.

Há perspectiva de mudança para essa situação?
Perrotti: Eu vejo uma tendência de funcionalização. Os meios eletrônicos trouxeram, aparentemente, uma presença maior da escrita, mas o uso que se faz dela é cada vez mais abreviado. Vai-se transformando a língua no elemento mínimo para a transmissão da mensagem. Nós estamos a anos-luz de formar pessoas que, ao cabo do período de escolaridade, vão se relacionar com a escrita como uma ferramenta de conhecimento e de experiências estéticas, numa dimensão não pragmática. Restringir as ferramentas de linguagem a sua função utilitária é retirar de nós mesmos aquilo que nos humaniza a capacidade de dizer de uma forma articulada. As novas bibliotecas têm de enfrentar essa questão.